quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

De CLARA DOS ANJOS

                 Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas.  Todo material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
                Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes.  Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto.  Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
                (...)
                Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam.  Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações.  Esse movimento dura até as dez horas da manhã e há toda uma população da cidade, de certo ponto, no número dos que nele tomam parte.  São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, de dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes.  Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.
                (...)
                O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste.  Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro espontâneo desce-lhe à entrada.
                Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes chuvas se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos.  A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d’água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na Avenida Central.
                O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa e cingi-lo todo em roda.  A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que  lhe cinge a testa olímpica...

                               Lima Barreto (1922)

3 comentários:

  1. É certo que nunca morei por essas paragens "barretianas". Mas é certo que nas poucas vezes em que tomei o trem "rumbo" ao subúrbio sempre me recordo dele, sobretudo deste texto, Clara dos Anjos. Lembro-me ele dizendo que Casi Jones, malandro do subúrbio, não se sentia muito bem passando dos limites do Campo de Santana...não, não é verdade quando digo que nunca morei no subúrbio carioca. Todas às vezes que leio e releio o Lima eu, ainda que temporariamente, me mudo para lá...e quando ando de trem sinto saudades...

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  2. Engraçado foi que eu postei o texto como um comentário de viés sobre a situação habitacional do carioca, do fluminese, do brasileiro na atualidade - coisa que o horror do que houve na Região Serrana por esses dias evidenciou. Nesse sentido a maior parte dos brasileiros moramos, sim, nessas "paragens barretianas", com diz você. Você leu no sentido de uma saudade, um pouco à moda de Chico e Vinícius em "Gente humilde". Que bom, não é, os sentidos possíveis de se construir. Um abraço

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  3. ...Não que eu seja "adepta" da "estetização da pobreza". Não. Longe disso. Sei que ele, também, faz uma crítica às péssimas condições de habitação do suburbano. Mas, por outro lado, e lendo Clara dos Anjos no conjunto da obra de Lima, não podemos deixar de ver que há "muito de poesia" no modus vivendis suburbano (e nos brasis profundos). O que vi, e vejo, é que as pessoas "são" e "se reconhecem" nesses "paragens", a par de toda a precariedade (de toda natureza) que lá existe, até hoje.

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