Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
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Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até as dez horas da manhã e há toda uma população da cidade, de certo ponto, no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, de dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.
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O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro espontâneo desce-lhe à entrada.
Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes chuvas se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d’água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na Avenida Central.
O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa e cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica...
Lima Barreto (1922)
É certo que nunca morei por essas paragens "barretianas". Mas é certo que nas poucas vezes em que tomei o trem "rumbo" ao subúrbio sempre me recordo dele, sobretudo deste texto, Clara dos Anjos. Lembro-me ele dizendo que Casi Jones, malandro do subúrbio, não se sentia muito bem passando dos limites do Campo de Santana...não, não é verdade quando digo que nunca morei no subúrbio carioca. Todas às vezes que leio e releio o Lima eu, ainda que temporariamente, me mudo para lá...e quando ando de trem sinto saudades...
ResponderExcluirEngraçado foi que eu postei o texto como um comentário de viés sobre a situação habitacional do carioca, do fluminese, do brasileiro na atualidade - coisa que o horror do que houve na Região Serrana por esses dias evidenciou. Nesse sentido a maior parte dos brasileiros moramos, sim, nessas "paragens barretianas", com diz você. Você leu no sentido de uma saudade, um pouco à moda de Chico e Vinícius em "Gente humilde". Que bom, não é, os sentidos possíveis de se construir. Um abraço
ResponderExcluir...Não que eu seja "adepta" da "estetização da pobreza". Não. Longe disso. Sei que ele, também, faz uma crítica às péssimas condições de habitação do suburbano. Mas, por outro lado, e lendo Clara dos Anjos no conjunto da obra de Lima, não podemos deixar de ver que há "muito de poesia" no modus vivendis suburbano (e nos brasis profundos). O que vi, e vejo, é que as pessoas "são" e "se reconhecem" nesses "paragens", a par de toda a precariedade (de toda natureza) que lá existe, até hoje.
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