O ano foi possivelmente 1968. Talvez, 1969. Eu ia com freqüência ao Maracanã e a outros estádios cariocas, com meu irmão e com Didi, grande amigo. Muitas vezes acompanhei o grande Bangu de 1964 a 67, o Botafogo de Gerson e Jairzinho. Mas naquele domingo pelo Rio-São Paulo tratava-se de Flamengo X Santos. Santos de Pelé. E com Pelé.
E eu tinha um motivo a mais para ir ao estádio naquele domingo: meu primo, com seus 6 anos, que nós adoraríamos que ele fosse conhecer o Maracanã, ver um jogo de perto. Não que ele parecesse se interessar por futebol, mas nós gostaríamos de ver sua estréia, naquele entusiasmo de aficcionados que querem fazer com que os outros também o sejam. Para ajudar na concretização dessa nossa vontade tão arbitrária, o pai dele também estava querendo muito ver o Pelé jogar. Como nenhum de nós era flamenguista, certamente arrumaríamos um setor neutro, fora de torcida, de modo a ver a partida sem maior paixão de torcedor. Tratava-se de ver sobretudo o Rei. E para mim tratava-se sobretudo de ver meu primo estreando naquele mundo colorido, deslumbrante, alegre do futebol brasileiro. Será que de alguma forma o garoto seria conquistado para a nossa paixão futebolística, naquela fase da vida em que, para quem o descobre, o futebol apaixona de maneira decisiva?
Era a segunda vez na vida que eu ia ao estádio para ver o Negão ao vivo. Da primeira, acho que em 66, Pelé e Garrincha arrasaram uma seleção que não lembro qual era nos preparativos para a Copa de 66. Foi a única vez que vi Garrincha no estádio e ele jogou muito, de uma maneira que nenhum outro jogador jamais tinha me impressionado. Mas a sua carreira já estava em queda e talvez eu tenha assistido ao seu canto de cisne. Não teve continuidade dali para a frente, sua trajetória entraria em abissal declínio não demoraria muito. Mas não Pelé. Eu tinha e ainda tenho uma admiração enorme pelo Rei. Naqueles tempos de rara TV, as oportunidades para um moleque de 12, 13 anos vê-lo ao vivo no estádio valiam todo esforço. Que era praticamente nenhum.
Maracanã cheio, claro, afinal era o Flamengo e afinal era o Pelé em campo. Chegamos cedo, pegamos um bom lugar na arquibancada, quase central, as expectativas melhores se cumpriam. Meu primo encantou-se com toda aquela balbúrdia, deslumbrado. O jogo começa, as atenções se concentrando no que acontecia em campo, “olho no lance!”, como diria o Silvio Luiz, olho em todos os lances.
Pronto: começou o fastio do menino (não, o futebol não o conquistaria então, não o conquistou nunca). Claro que na primeira bola tocada por Pelé ele prestou atenção, mesmo para o mais ET naquele ambiente o Negão era uma legenda. Mas o Rei não queria fazer naquela tarde a parte que lhe competia. Seu marcador era o Onça, um zagueiro grosso a mais não poder, truculento (jamais escreveria: “como seu apelido indicava”), muito mas muito ruim de bola, como aliás o time do Flamengo daqueles anos (gostaria de livrar a cara do Silva, o Batuta, cracaço, mas não sei se ele ainda jogava no Flamengo). Enfim, com Pelé sem conseguir fazer nada, com Onça nos seus calcanhares (eu jamais escreveria: “mordendo”)... resultado: com 15 minutos de jogo, passado o encanto inicial, meu primo começou a pedir para ir embora. Eu gelei, desconfortável. Lembro que tive raiva. O menino insistia com o pai, que fossem, que não queria mais ficar ali, virava-se de costas para o campo, tentava tirar a visão da gente, o pai tentava argumentar “peraí filho, daqui a pouco acaba, a gente já vai...” coisas desse tipo para refrear ao menos a violenta quebra de expectativas de todos nós. Lembro que eu sentia a frustração subir com ardor até minhas orelhas, sensação de fracasso. O moleque fazia manha, o próprio pai tinha que se esforçar para conseguir ver o jogo, o danado se plantava na frente dele para forçar a retirada antecipada. E o Negão não colaborando. O tempo passando, já devia ter meia hora, aquela tortura comandada pelo tirano infantil não prometia arrefecimento.
Mas eis que... o Negão recebe a bola com espaço-tempo suficientes para que Onça não consiga chegar nele. Lembro que foi ali, bem na nossa frente, um pouco antes da entrada da grande área. Lembro: um “frisson” (ninguém me obrigará a acrescentar: “galvanique”) percorre a torcida – e não estávamos na torcida do Flamengo, embora lá também certamente tenha ocorrido, com sinal contrário, tal frêmito. A sensação é tão forte que a reação de todos faz com que até meu primo volte os olhos para o campo a fim de ver o lance. Não deu outra. Com espaço-tempo para respirar, o Negão enviesa para dentro, chega na meia-lua e pimba! chute indefensável, Negão 1 a 0. Todos que ali tinham ido para ver Pelé (não, não era nada parecido com um sentimento anti-flamenguista, era para ver o Rei mesmo que a gente ia ao estádio, o que talvez seja difícil de entender hoje) vibraram, pularam, gritaram. Átimo de festa. Os olhos do meu primo brilharam com aquela novidade, para a qual parecia não haver mais nenhuma expectativa.
Acabada a comemoração, de novo os olhos na partida. Fácil de adivinhar que meu primo retomaria sua postura manhosa, irritante. Mas não teve tempo. Antes que recomeçasse, seu pai o tomou pela mão e lhe disse “Agora vamos!”, despediu-se rapidamente da gente e tomou o rumo da saída. Fiquei decepcionado com o resultado daquela tentativa de sedução. Mas talvez não tanto quanto um negão dois lances acima de nós na arquibancada. Ao ver a retirada do meu tio com o menino pela mão, não se conteve: “Maior ignorância, aí. O Flamengo toma um gol do Negão, e o coroa não deixa nem o moleque ver o resto da partida, pô...”
Deliciosa crônica, Bozzetti! Me identifiquei muito com o garoto aí, pô. Meu tio me levou no Almeidão pra ver Botafogo da Paraíba e Treze de Campina Grande, aí pelo iniciozinho dos 80 (ou seriam os finaizinhos dos 70?). Nunca mais voltei num estádio...
ResponderExcluirÓtimo esse comentário, Lauro. Ou seja, não dá para argumentar quando o futebol não seduz, não é? você foi ver um joguinho - com todo o respeito aos seus conterrâneos - mas no caso aqui não. Meu primo foi ver la crème de la crème. Fazer o quê?
ResponderExcluirGrande abraço
Fazer o que, né? Quem nasceu pra burro nunca chegará mesmo a cavalo! kkkkk. O moleque tava mais que certo. Nem mesmo pra ver o Negão jogar eu iria me meter "no meio do lixo", hahaha.
ResponderExcluirObrigado, J, um abraço
ResponderExcluirdo Roberto Bozzetti
REALMENTE MEU PRIMO VC TEM UMA MEMÓRIA D ELEFANTE...ATÉ ME LEMBRO DO FATO ,MAS DETALHES...NEM LEMBRAVA Q O REI ESTAVA EM CAMPO!!PENSANDO HJ TALVEZ ESSA COISA DA MULTIDÃO TENHA ME DEIXADO APREENSIVO...ALIÁS VÁRIAS VEZES Q ESTIVE EM LOCAIS COM MUITAS PESSOAS PRÓXIMAS A MIM,CONFESSO Q NÃO GOSTO,E OLHA Q ATÉ ME AVENTUREI A COMPARECER NA ULTIMA NOITE DO PRIMEIRO ROCK IN RIO...E DETESTEI...TBM QUIS SAIR FORA.MAS VALEU PELA CRÔNICA,MUITO LEGAL!!!BJSS GUILHERME OLIVEIRA,RJ.
ResponderExcluirValeu Gui, que bom que vc gostou!
ResponderExcluirbeijão
Adorei, professor!! :D
ResponderExcluirObrigado, Jéssica. Um beijo do
ResponderExcluirBozzetti