terça-feira, 4 de janeiro de 2011

DUAS ASSINATURAS

                  Em 1966, depois de muitos dias de chuva,  o Arno transborda e causa o que foi a maior catástrofe natural que até hoje atingiu Florença.  O que os bombardeios da 2ª Guerra Mundial pouparam a água faz com a cidade-monumento: uma devastação sem precedentes, um rastro inacreditável de destruição. Na alcova de um daqueles palazzos milenares o arquiteto Melandri está prestes a conseguir seduzir em definitivo a bela Apolonia, galharda e altiva como uma Virgem de Rafael, os dois entregues às preliminares – ele, um sátiro profissional; ela, uma guardiã das virtudes cristãs – sem nada saber do que se passa lá fora. É quando chegam da rua os gritos dos vizinhos, que se deparam com a catástrofe no dia que amanhece.  Prestes a sucumbir aos apelos eróticos de Melandri, Apolonia encontra forças para agradecer aos céus o dilúvio que interrompe o ato antes de sua definitiva consumação.  Enxergando a dimensão do estrago feito pelas águas, Melandri lhe grita indignado: “Imbecil! Então você acha que para preservar a virgindade de uma idiota, Deus ia destruir Florença inteira?!” Na frase, a assinatura de Mario Monicelli. O filme é O quinteto irreverente, a sequência de Meus caros amigos.  Mas atenção: foi feito um Meus caros amigos 3, sem Monicelli.  É lixo.
                Ao final de Era uma vez no Oeste, Jason Robards, na pele do pistoleiro Cheyenne diz a Claudia Cardinale,  a ambígua heroína Jill, que ela deveria ir lá fora servir água aos homens que naquele momento, exaustos,   começam a fazer chegar os trilhos da ferrovia até sua propriedade: “Só de olhar para uma mulher como você qualquer homem já se sente bem.  E se algum mais empolgado lhe passar a mão na bunda, finja que não é nada.”  A seguir, após o duelo em que Charles Bronson/Harmônica  se vinga de Henry Fonda/Frank , Cheyenne e Harmônica seguem caminho, aquele para morrer logo adiante, longe dos olhos da mulher e fora da vista do próprio Bronson, a quem pede que não o veja morrendo.  E o último ato de Cheyenne (só ele sabe se sabe agonizante,  por um tiro que o atingiu e que nem nós nem os demais em cena sabemos) ao deixar a casa foi justamente passar a mão na bunda de Jill.  Esse gesto e o “finja que não é nada” são a assinatura italiana, mais que do próprio Leone, dessa obra-prima do western, gênero paradigmático do cinema americano.  Uma assinatura que jamais veríamos num western americano, muito menos em 1968.

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