quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

UM BEM-PENSANTE ENCALACRADO PELAS TRAPAÇAS DA MEMÓRIA

            Listei aqui outro dia, plagiando do blog do Paulo Neves (http://nolimiar.wordpress.com ), uma lista de canções que foram marcantes para mim.  Em geral as canções que nos marcam acontecem ali na entrada e na saída da adolescência etária.  As minhas aconteceram dos meus 10 aos 17, 18 anos. Quando listei propositalmente nove canções, ampliando a proposta original do blog de Neves,  que era de cinco, eu argumentei que nove era pelo menos  melhor do que dez, já que obrigaria a um corte mais rigoroso na triagem da memória. Era só meia verdade, claro, isso no fundo não existe, ninguém é “mais rigoroso” com a memória dos afetos e daquilo que de alguma forma será decisivo naquilo que nos forma.  Waly Salomão escreveu num poema e  repetia sempre que “a memória é uma ilha de edição”.  Entendo que o que fica invisível no que guardamos depende de algum imponderável, de alguma circunstância para se mostrar com sua potência de irreversível no retorno à memória,  algo  que nos iludíamos de ter apagado.  No máximo a gente pode  brincar de ser rigoroso.
                Quando fiz a tal lista, uma canção em particular me foi muito difícil deixar de fora, mais do que todas as outras que acabei excluindo: “Il ragazzo della via Gluck”, de Adriano Celentano, uma canzone entre o folk e o fuleiro rock italiano dos anos 60 (a canção constava de um disco do Festival de San Remo, acho que de 66 ou 67, que tinha lá em casa). Talvez o aspecto meio folk, talvez o fato de Celentano ser milanês, talvez o atrativo de a rua ser homenagem a Gluck, compositor alemão do século XVIII que se tornou uma espécie de legenda em Milão, não sei bem, o fato é que a canção despertou a simpatia do meu avô – que abominava tudo o que não fosse “música séria” - , a ponto de ele me traduzir  verso a verso a letra: se bem lembro, era uma nostálgica estória de um sujeito que sai da província, de sua casinha humilde na rua Gluck e vai enriquecer  na cidade grande e que, ao retornar, reencontra tudo modificado pela urbanização que chegara também a sua aldeia: “Lá dove c’era l’erba” agora é “catrame e cemento” (...) Eu adorava essa canção, ela me mostrou pela primeira vez a dualidade campo-cidade, que no meu dia-a-dia eu vivenciava já, entre este brejo aqui onde afinal vim a morar depois de tanto tempo, e a Copacabana onde morei até me tornar adulto.  A canção de Celentano me fazia ainda vislumbrar outros elos de identificação, entre mim, o personagem da canção e meu avô, entre Brasil e Itália. Se não me engano, falava até mesmo num trem, o trem que eu pegava quando garoto para vir aqui para a roça. Parênteses: escrevo isso do trem e me lembro de “Morro velho”, uma das canções iniciais de Milton Nascimento, da mesma época, e que também me encantou por questões parecidas
                Mas acho que agora, no fundo, tergiverso. O imponderável se mostrou aqui outro dia num carro barulhento que entrou pela ruazinha lateral. Quer dizer, barulhento era o sistema de som do carro, que enquanto esteve por aqui parado, vendendo ou consertando bugigangas, tocou uma coleção de músicas cafonas bem no estilo dos anos 60, embora eu não conhecesse nenhuma delas. Não era o brega – como passou a se chamar – derivado do sertanejo como hoje, era o cafona derivado justamente do rock-balada-canzone italiano, matriz de muito da nossa jovem guarda, Roberto Carlos à frente.  O imponderável se fez presente justo porque me fez lembrar muitas daquelas canções que eu ouvia nos anos 60,  e fiquei me perguntando,  ao mesmo tempo em que delas me lembrava, porque nenhuma entrou na minha seleção das nove marcantes.
                Revi a lista (está em http://robertobozzetti.blogspot.com/2010/12/na-memoria-cancoes-que-ficaram-plagiado.html) e não, ela não é mentirosa não, quer dizer, o que ela possa ter de mentira não compromete a sinceridade do esforço de memória. Mas fiquei pensando se nenhuma daquelas canções cafonas teria aí seu espaço.  Talvez mesmo não.  Mas insisti e me obriguei a pensar porque nenhuma delas sequer me chegou à lembrança na hora de pensar nas que marcaram.  Ou seja, resolvi mesmo me incomodar. E aí fui olhar a minha lista mais uma vez e fiquei com uma certa vergonha do que ela parece ter de pseudo e de bem-pensante.  “Pseudo” aqui vai exatamente como “vontade de me mostrar bem-pensante”.  Chego a quase corar ao ler aquelas justificativas, justo pelo que elas possam conter de verdade e não de mentira. A verdade de um poseur!
                Me senti numa espécie de obrigação quase moral de falar delas, mas não quero criar um “acervo” especial, uma espécie de gueto para a memória.  Até porque  me lembro que quando eu ouvi o primeiro LP de Paulinho da Viola, em 1968,  alguns versos que ele canta,  tais como “fácil demais fui presa/servi de pasto em tua mesa”, de Cartola, “não tardas em me dizer que vais embora”, de Nelson Cavaquinho, e outros, me pareciam mais próximos da poética cafona do que da poética mais moderna dos seus companheiros de geração na “MPB”.  Por outro lado, o mesmo Paulinho no mesmo disco,  nas canções de sua autoria, distanciava-se dessa poética tradicional do samba, de maneira muito sutil, mas se distanciava – sem polemizar ou “desconstruir”.  Essa é uma das razões do seu encanto e de sua dificuldade – seu “mistério” –  desde então para mim.  E “Coisas do mundo, minha nega”, que é desse disco, é ela mesma uma discussão sobre isso.
                Sobre o repertório cafona, Paulo Cesar de Araujo escreveu um livro valioso, Eu não sou cachorro não (Record),  abordando essas questões, que me voltam com freqüência, num livro que eu vou reler.  Mas, embora a pertinência de muito do que ele diz, não dá para concordar com tudo não.  O tema é fascinante, eu vou voltar a ele possivelmente aqui mesmo neste blog.  Agora, o que me parece dizer alguma coisa, embora talvez eu não saiba lá muito bem o quê, é que, seja como for, essas canções de que falo aqui não me marcaram para sempre, como aquelas que eu indiquei marcaram, fossem cinco ou nove.  Isso é possivelmente mais um sintoma de,  mais do que querer parecer, ser  de fato “bem-pensante”, o que não me agrada.  Afinal, o “bem-pensantismo” é o senso comum, é o “bom-mocismo intelelectual”.  Abomino bom-mocismo.
                Afinal, que canções me voltaram, de que canções estou falando eu aqui?  Uma rápida vasculhada na memória me aponta aquela que talvez tenha sido a mais marcante: “Eu não presto, mas eu te amo”, cantada por um tal José Roberto, de quem nunca mais ouvi falar; e a canção, vou ver até se tenho como conferir isso, parece que foi composta por Roberto Carlos.  Que também compôs, se não me engano, “Meu grito”, primeira gravação que eu me lembre de sucesso de Agnaldo Timóteo.  Roberto Carlos me inundou de canções marcantes, ele sempre foi especial na turma,  e até hoje ouço com muito prazer sua discografia até o disco de 1971, que tem “Detalhes”, que me parece a sua obra-prima, uma das canções de dor de corno mais lindas já compostas no Brasil.  Havia outras canções sim, da época, mas não tenho nenhuma nitidez quanto a elas, o que possivelmente quer dizer que não foram tão marcantes assim.  Agora, seria um joio a ser separado do trigo?  Caetano disse uma vez que sabia diferenciar joio do trigo, só que às vezes ele optava pelo joio.  O que acho brilhante como formulação e, isso sim, muito verdadeiro.
                Curioso: resolvi procurar na net pela canzone de Celentano.  Para minha surpresa total há um vídeo em que ele a canta em português de Cabo Verde, com Cesária Évora.  Chama-se, “Quel casinha”.  Mas isso pede um outro post, outro dia.

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