quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O TOLICIONÁRIO DE FLAUBERT E O NOSSO

           Bouvard e Pécuchet é o último livro (chamemo-lo “romance”) de Flaubert.  Sua primeira edição é de 1881, um ano após a morte de seu autor.  Obra póstuma e inacabada, com ela o autor de Madame Bovary pretendeu fazer uma espécie de suma, na verdade soma e resumo, da estupidez humana, sua “vingança moral” contra  a tolice, apreensível no discurso dos dois palermas  pequeno-burgueses que dão título ao livro. 
É sabido o quanto Flaubert era atormentado por seu rigor criativo, suas obsessões com a escrita faziam-no viver verdadeiramente torturado, e o projeto de Bouvard e Pécuchet parece que estava deveras destinado ao “fracasso”, ao inacabado: “É preciso estar louco e triplamente frenético para empreender um livro como esse!”, escreveu numa carta de 1872, quando começou a empreender o seu projeto.  Num texto ainda anterior, de 1852 (lembre-se que Madame Bovary, o romance  que o consagra, será publicado apenas em 1857), o escritor, ainda com 30 anos incompletos, já acena na direção do que seria a diretriz que o levaria a seu último livro e talvez, a rigor, a toda a sua obra: “Seria necessário que, em todo o livro, não houvesse uma só palavra de minha autoria e que depois de lê-lo as pessoas não ousassem mais falar com medo de dizer instintivamente uma das frases que lá se encontram.”   Como se vê por essa reflexão, Flaubert – assim como Machado fez também várias vezes,  aliás – levanta uma questão crucial para o que depois, bem depois, já no século XX, seriam alguns dos desenvolvimentos basilares da lingüística, da teoria da literatura e da filosofia da linguagem.
                Mas não pretendo aqui discorrer de forma ensaística não.  As informações centrais acima expostas, bem como um tanto do que vai desordenada e dispersamente exposto por mim, muito de tudo isso pode ser lido com muito mais proveito no ensaio de Augusto de Campos “O Flaubert que faz falta”, que está em seu À margem da margem, editado pela Companhia das Letras.  Tem também o ótimo apêndice à tradução, relançada pela Nova Fronteira em 1981 (100 após a 1ª. edição, portanto), que me parece a cargo dos tradutores (não fica claro) Galeão Coutinho e Augusto Meyer.
                Na verdade o que eu queria falar era sobre a segunda parte de Bouvard e Pécuchet, que pouco foi além de anotações,  e que é genial: seria composto de um “Dicionário de Ideias Feitas” e de um “Catálogo de Ideias Chiques”, constituindo o que Guy de Maupassant chamou de “Sottisier” e que Augusto de Campos traduz, como sempre maravilhosamente, como “Tolicionário”: uma espantosa coleção de tolices, recolhidas em quase três mil folhas deixadas por Flaubert, uma compilação que envolveu a consulta a mais de 1.500 obras e muita mas muita nota mesmo tomada do discurso tolo cotidiano.  Na carta acima aludida de 1852,  Flaubert assim situa o plano:  “Aí se encontrará, em ordem alfabética, e versando todos os assuntos possíveis, tudo quanto se deve dizer em sociedade para ser um homem educado e amável. Por exemplo:
Artista – São todos desinteressados
França – Quer um braço de ferro para ser dirigida
Ereção – Só se diz com referência aos monumentos, etc.”

                Mas qual seria o “enredo” de Bouvard e Pécuchet? Jorge Luís Borges, que admirava profundamente o livro, assim o resumiu em texto de 1954:

                “Dois copistas (cuja idade, como a de Alonso Quijano – o Quixote – se acerca dos cinquenta anos) travam estreita amizade: uma herança lhes permite deixar o emprego e fixar-se no campo: aí ensaiam a agronomia,  a jardinagem, a fabricação de conservas, a anatomia, a arqueologia, a história, a mnemônica, a literatura, a hidroterapia, o espiritismo, a ginástica, a pedagogia, a veterinária, a filosofia e a religião; cada uma dessas disciplina heterogêneas lhes reserva um fracasso;ao cabo de vinte ou trinta anos, desencantados (a ‘ação’ não ocorre no tempo mas na eternidade), encomendam ao carpinteiro uma escrivaninha dupla e se põem a copiar como antes.”
                É divertidíssima a leitura da obra, se se está disposto a entender a trajetória humana sobre este “vale de lágrimas” ao longo dos séculos e séculos pelo viés de  uma infinita produção de tolices.  O caráter enciclopédico do livro é, pois também, necessariamente incompleto, portador, por definição, de infinitude.  Fico pensando no pobre Flaubert hoje, atormentado pela mega-montanhas de informações amalucadas despejadas às infinitas carradas pela mídia.  Pensemos, por exemplo, só na produção de tolices na internet.  Das “frases do dia” no Orkut às mensagens automáticas, às definições e conceitos da Wikipedia, aos sites de “pensamentos”, enfim... na verdadeira e injustificada fome que têm as pessoas de interagirem e sua incapacidade de fazê-lo,  renovada ad nauseam  pela felicidade e o orgulho que demonstram em colher idiotices “assinadas” por autores-celebridades e que elas vão passando adiante, citando e recitando, copiando e colando nos textos que “assinam”... paro, que a sensação é de vertigem – e não estou fazendo linguagem figurada, é vertigem literal. Os pobres copistas de Flaubert seriam levados ao suicídio.  Nem sonhar com o grau zero da escrita é mais possível.
                Mas vejamos alguns pouquíssimos exemplos retirados quase ao acaso do Tolicionário.  Primeiro, do “Catálogo de Ideias Feitas”:

Ave – Desejar ser uma ave e dizer, suspirando, “Asas! Asas!” demonstra alma poética.
Atrizes – Perdição dos filhos de família. – São de uma espantosa lubricidade, atiram-se às orgias, consomem milhões (acabam no hospital). – Perdão! Há algumas que são boas mães de família!
Bronze – Metal da antiguidade.
Claro-escuro – Não se sabe o que é.
Deserto – Produz as tâmaras.
Espartilho – Impede a gravidez.
Feudalismo – Não ter a respeito nenhuma idéia precisa, mas indignar-se contra.
Ginástica – Não se deve abusar. – Extenua as crianças.
Hidroterapia – Cura todas as doenças, mas também as provoca.

Quanto ao “Catálogo das Ideias Chiques”, na folha de abertura Flaubert deixou escritas algumas das seguintes anotações:

Defesa da escravidão.
Defesa da Noite de São Bartolomeu.
Escarnecer dos que “conhecem bem o assunto”.
Escarnecer dos sábios.
Escarnecer dos estudos clássicos.
Comentar a respeito de um grande homem: “Não é o que dizem!” Todos os grandes homens não são o que dizem. Aliás, não há grandes homens.

                Falei acima no ensaio de Augusto de Campos, que é de 1980, pelo qual tenho grande admiração (como tudo em Augusto), mas penso que falta ali uma conexão – entre as tantas conexões que o autor faz – entre  Flaubert e Machado.  De fato, há textos de Machado que se aproximam desse estilo “tolicionário”, como o demolidor e absolutamente hilariante Memórias póstumas de Brás Cubas, assim tambem   “O alienista” e, claro, a “Teoria do Medalhão”.  Está aí uma interessante conexão a ser feita –  se é que alguém ainda não a fez.
                Claro, não há guarda-chuva contra os tsunamis de tolices sob cuja ameaça  vivemos.  Mas conhecer, não só em espírito e citação, esse livro de Flaubert pode nos manter um pouco alertas contra o perigo circundante.  Me lembro agora, e finalizo, de uma “conferência”, que está gravada em vídeo, absolutamente hilária de um intelectual de terceiro time que ocupa um alto cargo no setor cultural de uma dessas fábricas de diplomas que no Brasil recebem atualmente o nome de IES (Instituições de Ensino Superior).  Claro que é hilariante involuntariamente.  De duas passagens – mas são muitas, de deixar Bouvard e Pécuchet se fizessem edição de vídeo muito atarefados – lembro sempre. A primeira, quando o tal intelectual  lê a primeira página, num espanhol pra lá de sofrível, do Quixote e anuncia, solene:  “É assim, in media res que se inicia a imortal obra cervantina...”; fico sempre pensando que é possível que ele conheça ou algum filme, ou desenho animado, ou adaptação juvenil (não a de Lobato!) em que a narrativa do Quixote comece in media res,  mas não é o texto de Cervantes. Outra passagem é quando, ao defender a modernidade do curso de Letras da tal IES ouvimos: “No nosso curso é importante que o aluno aprenda a importância da obra de um Shakespeare, dos grandes autores de língua inglesa, mas queremos também que ele aprenda a língua para pedir um hambúrguer e uma coca-cola na cantina...”   Como se vê, quem se puser hoje a compilar um Tolicionário terá pela frente mais uma vez e mais do que nunca uma tarefa impossível de ser levada a cabo.
E para encerrar, agora de fato: há uma tradução de Bouvard e Pécuchet mais recente, de 2008, pela  Estação Liberdade.  Fiquei sabendo disso ao passear agora pela internet ao escrever isto aqui.

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