segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

SIMONAL - A DURA QUE LHE DERAM

            Na época do lançamento nos cinemas de Simonal - Ninguém sabe o duro que dei, o documentário sobre Wilson Simonal, eu saí tão impressionado da sessão que escrevi o texto a seguir, que posto abaixo com pequenas alterações no detalhe.  O filme já existe em DVD e o Canal Brasil o tem passado.  Vale como um momento para esta postagem.

            Wilson Simonal era um sujeito escroto.  Quanto a isso não parecem restar muitas dúvidas.  Ou, pelo menos, passou boa parte do auge de sua curta carreira investindo na imagem do sujeito escroto. O documentário recém-lançado sobre sua trajetória não parece estar muito a fim de limpar a barra dele por esse lado.  É extraordinário o filme, é extraordinário o personagem que dele emerge.  Com toda a sua escrotidão.
            Que acaba ficando em segundo plano, acrescente-se.  Em primeiríssimo plano, o filme põe, merecidamente, o seu não menos extraordinário talento de cantor, de entertainer de enorme carisma, enxertado de ingenuidade e cafajestagem em exata dosagem midiática. E mais que tudo isso: o filme registra dolorosamente a lembrança de tempos de intransigência, intolerância e cafajestagem a torto, à direita e à esquerda.  Tempos escrotos, enfim. Tempos que relegaram Simonal a um terrível castigo, o da morte em vida. O da morte pela distância que dele fizeram questão de manter seus antigos companheiros de showbizz e de meio musical, de boicote desses mesmos meios e da mídia, que o arrastaram da difamação ao anonimato, daí à pestilência, à vergonha perante o público, enfim ao ostracismo e à morte. E à impiedade post-mortem.  Que o filme, de forma extremamente lúcida e conseqüente, vem tentar consertar.
            Não estou ainda na “melhor idade” (melhor só do que a próxima), mas lembro de uma entrevista no Pasquim, na primeira vinda de Caetano do exílio londrino, em 71 portanto, em que Tarso de Castro tenta de todas as maneiras que ele fale mal de Simonal. E Caetano se recusa, eximindo-se de início de conhecer as circunstâncias que naquele momento cercavam a figura do cantor – quando Caetano e Gil foram para o exílio londrino,  Simonal estava no auge – e  a seguir afirmando taxativamente que o que ele sabia de Simonal era que se tratava de um excelente cantor – e ponto.  Por si só uma recusa como essa era um ato de enorme coragem naquela época, ainda mais no Pasquim.  Caetano sempre foi corajoso.
            Ao dizer que Simonal era um escroto, estou tranqüilo quanto aos velhos vícios escaramuçados no homo brasiliensis: nada a ver com o fato de ser o negro que deu certo, de ser o crioulo marrento, o analfabeto que ganha mais do que quem estuda, nada disso. Simonal era um escroto porque a atitude que o levou ao cadafalso foi uma atitude escrota: chamar uns amigos ligados às forças da repressão, uns pés de chinelo, pra “dar uma dura” num empregado que ele julgava estar lesando-o.  E a coisa saiu de seu controle. Agora, e isso é fundamental frisar, trata-se uma atitude absolutamente corriqueira em nossa sociedade de pessoas escrotas, em nossa sociedade escrota. Que acontece a torto e a direito e à esquerda (alguém duvida?), mas que no caso dele, melou... e ele era um ótimo bode pra pagar os pecados da tribo.
            Simonal não tinha ligação alguma com as forças da repressão, todos os que depõem no filme o reconhecem – e mais uma escrotidão: mesmo na época, todos pareciam ter a mesma certeza. O fato de ter, como escrevi acima, “amigos ligados” a elas não quer dizer nada também.  Eram meganhas de segunda categoria, de décima quinta hierarquia.  O problema, quem viveu naqueles tempos sabe, é que qualquer meganha de esquina ostentava mais poder do que os juízes.  E entre estes, também, quantos eram e são escrotos...
            País da escrotidão, país escroto.  Saí do filme pensando que Simonal é um personagem brasileiro de tragédia grega.  Tomado pela desmedida de si, cometeu a sua falha fundamental e pagou caríssimo por ela, muito mais do que merecia.  E recebeu uma terrível punição sem volta. Agora, fico também pensando se ele seria de fato um personagem trágico... será que lhe faltaria para isso a grandeza que, segundo Aristóteles, seria elemento primordial para a catarse, isto é, teríamos como de fato nos condoer de sua sorte?  Não, não tenho dúvida de que sim, a tentação da escrotidão nos ronda a todo momento.
            O documentário toca pela primeira vez na ferida de um personagem específico,  na ferida funda de uma questão incômoda para todos.  Há muita coisa a ser trazida a tona ainda.  Bem que se poderia começar pelo lançamento de seus discos em CDs. Em meio a muita bobagem – sim, eu tinha alguns LPs de Simonal – tem coisas também excelentes ali.

4 comentários:

  1. É interessante como parece não haver mudanças em alguns comportamentos tipicamente brasileiros. "Você sabe com quem está falando?" parece ainda ser, e de repente pra sempre seja, a maior forma de ostentação de poder(daquele que não o possui, principalmente)num país onde a educação é apenas um "projeto do futuro". Simonal, com certeza, pagou pela falha desse "projeto". Se assim não fosse, creio que ele não teria morrido em vida. Canalha até poderia ser se esse fosse o caso, mas Caetano, por exemplo, por ser alguém culto, corajoso irá viver após a morte.

    ResponderExcluir
  2. Wallace, obrigado pelo comentário.

    Sobre essa questão do "vc sabe com quem está falando?", penso que aquelas reflexões de Sergio B. de Holanda em "Raízes do Brasil" que discutimos na cadeira de Cultura Brasileira (ou vc não chegou a cursar comigo?)ajudam a situar o problema. O antropólogo Roberto DaMatta estudou com amplitude essa questão também, em, se não me engano, "Carnavais, malandros e heróis."
    Não sei se entendi bem o paralelo - se é que o é - que vc faz com Caetano.
    Um abraço

    ResponderExcluir
  3. Meu caro Roberto Bozzeti,
    Embora eu não costume comentar no seu blog, visito-o regularmente e navego pelas postagens. Acredito que somos mais ou menos da mesma geração, pois eu tenho 63 anos. Então, acompanhei a ascensão e a queda do Simonal: dancei ouvindo-o cantar, assisti-o no Canecão e depois falei muito mal dele também. Concordo com tudo que tenho lido a respeito: nós e ele exageramos. Porém, há um lado na questão nunca abordado: aquele estilo dele já havia sido descartado quando o tropicalismo deu uma vassourada estética em muita gente. Você deve se lembrar de cantores com estilo semelhante, como a Regininha, a "Turma da Pilantragem", assim como das composições do Antônio Adolfo e do Nonato Buzar... E aonde foram eles parar? No mesmo anonimato. Aliás, artistas e jogadores de futebol sem muita cabeça tem um futuro garantido nele. Só que no caso do Simonal, como não houve a menor solidariedade, ele se colocou como vítima e culpou a perseguição. Porém, na minha opinião, com ou sem a prisão e o patrulhamento político, ele seria jogado no limbo.
    Abraço,
    João Renato.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro João Renato,
      inicialmente, obrigado pelo seu comentário, pela sua leitura atenta e regular, diz você, do meu blog. Sim, podemos considerar que somos da mesma geração, eu estou com 58 anos.
      Quanto a seu comentário propriamente dito, não sei se concordo contigo, com o que parece ser o principal do que você diz. Você diz que Simonal e sua Turma da Pilantragem foram varridos pelo tropicalismo, resvalando para o anonimato desde então - Nonato Buzar morreu outro dia, completamente esquecido, a despeito de ter sido um compositor de bons momentos. Não sei se era um caso coletivo de falta de maior talento, como vc parece crer, e mais, não sei se isso teria sido determinante para o destino que tiveram. Simonal como cantor era soberbo - embora para meu gosto pessoal não me cativasse - era lícito apostar que teria tido uma carreira mais longa. Não sei. De qualquer forma, adquiri outro dia e ainda não li o livro do historiador Gustavo Alonso sobre ele, você conhece? Saiu pela Ed. Record e se chama Simonal: Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga. Estou curioso.
      Um forte abraço do
      Roberto Bozzetti

      Excluir