sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A PRÓXIMA PÁGINA

                                 Na próxima página

há uma curva
não a do tempo
(propícia curva
a derrapagens
quando se turva
a manhã límpida
que se pensara
inquebrantável)
mas há uma curva
na próxima página
é mais de giro
sobre si mesma
giro que torna
sobre si mesmo
de certa forma
o branco zero
de quando início
desabitadas
todas as páginas
não eram a
próxima curva
curva de fuga
inalcançável
não por fatal
velocidade
que se imprimiu
ao escrevível
e se espatifa
ao ser fechada
na próxima página
curva de oferta
a que se chega
se se chegar
só por descuido
sem interesse
pelo legível
a um endereço
silencioso
imperturbável
onde a letra
não mais se esconde
onde o nome
impronunciável
deita-se ao  lado
da assinatura
só por hipótese
já que não vemos
daqui não vemos
não vemos nada
na próxima página.

          Roberto Bozzetti

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

AH! UM SONETO − BRANCO...

O MUNDO REVIVIDO

Sobre esta casa e as árvores que o tempo
esqueceu de levar.  Sobre o curral
de pedra e paz e de outras vacas tristes
chorando a lua e a noite sem bezerros.

Sobre a parede larga deste açude
onde outras cobras verdes se arrastavam,
e pondo o sol nos seus olhos parados
iam colhendo sua safra de sapos.

Sob as constelações do sul que a noite
armava e desarmava: as Três-Marias,
o cruzeiro distante e o Sete-Estrelo.

Sobre este mundo revivido em vão,
a lembrança de primos, de cavalos,
de silêncio perdido para sempre.

                               H. Dobal ( In: A província deserta, 1974)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

DOIS POEMAS DE MORGENSTERN

AS PLACAS

Não se deve zombar das placas que trazem
uma mão mostrando o que ali fazem;

o nome de um bar que atrai o freguês,
os regulamentos que a polícia fez.

Elas são, se nada mais fala neste vasto mundo,
um maravilhoso exemplo, justo e profundo:

sua modesta presença é uma lição de cultura:
aqui reina o homem, não mais o urso e o miura.


NASCIMENTO DA FILOSOFIA

Espantada, a ovelha me olha enquanto come,
como se vira em mim o primeiro homem.
Seu olhar contagia; pasmamos; está parecendo
que pela primeira vez uma ovelha estou vendo.


                               Christian Morgenstern (1871-1914)
                               Tradução de Montez Magno

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

NA MEMÓRIA: CANÇÕES QUE FICARAM (plagiado de Paulo Neves)

Paulo Neves postou no ótimo blog dele, que está listado abaixo entre os recomendados (http://nolimiar.wordpress.com/), uma brincadeira feita entre oito amigos,  em que cada um tinha que listar “5 canções que marcaram”, isto é, que mais os emocionaram na vida.  Ele levou a idéia pro blog e eu entrei na brincadeira, listei lá as minhas cinco.  Cinco? Pois é… vou estender um pouquinho aqui a coisa e selecionar 9.  9 é melhor  do que 10, já que obriga a um corte radical severo, como uma espada sobre a cabeça para decepar o hábito mental das “10 mais” (conhecido atualmente como “top ten”).   Num universo absolutamente infinito de canções, pus o foco naquelas que na primeira audição (vá lá, nas primeiras...) se impuseram, por uma emoção particular ou outra, impactos esses que tento explicar agora,  tão a posteriori.   Esses impactos aconteceram para mim na seguinte ordem cronológica:

1. Maracangalha, Dorival: quando mais tarde conheci o Pasárgada de Bandeira, achei que o poeta tinha errado o nome do lugar para onde queria ir;

2. Procissão, Gil: comecei a entender que seria legítimo não crer;

3. I can’t stop loving you, Ray Charles: entendi que todos têm uma alma negra e cega, blue e jubilosa;

4 Coisas do mundo, minha nega: instaurou para sempre em mim o mistério Paulinho da Viola;

5.Wave, Tom Jobim: alguém falou que era a canção mais bonita do mundo e até hoje não ouvi nada que desmentisse;

            Essas foram as cinco que listei lá.  Vou aqui com mais quatro, ainda na ordem cronológica dos impactos para mim:

6. Samba da pergunta, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos, impossível para mim cantá-la, instaurando  uma vontade que fica para sempre na sua impossibilidade gozosa.

7.  Ombra mai fu, da ópera “Xerxes” de Haendel, uma descoberta atordoante da beleza nuns discos de “música clássica ligeira” da família;

8. Na asa do vento, de João do Vale e Luiz Vieira, na interpretação de Caetano: poética definição dos segredos da canção e da poesia em som, verbal e melódico, e sentido;

9. Sempre teu amor, de Manacea, cantada pela Cristina: fonte que jorra jorra jorra...

sábado, 25 de dezembro de 2010

IT'S BETTER TO BE HAPPY

Sentada às vezes sobre a relva boa,
Ia rever os álbuns de pintura,
Amava a criação e a criatura
Com seus olhos de amor que amar perdoa.

Se o relógio cantava no salão,
Levava susto e ria-se depois:
A manga é para mim, para nós dois
O roseiral, a rede, o sol, o pão.

Pela manhã, saltando na piscina,
Aos saltos acordava o sapo-boi;
E tempo-que-será, tempo-que-foi
Davam-se as mãos dançando na colina.

                               Paulo Mendes Campos

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

CARNE

                Na  apresentação deste blog está lá “comes e bebes”... misturado aos outros assuntos sobre os quais fico tagarelando aqui.  Inclusive no “Quem sou eu” a maior parte do texto ficou por conta de um soneto do  Marcelo Diniz, que generosamente louva  sobretudo as minhas qualidades... de cozinheiro. E aí me toquei que o assunto “comes e bebes” ainda não tinha rolado aqui, a não ser que se considere que a “Modesta proposta” de Swift caiba como tal.  Mas penso que seria uma piada pesada demais para as pessoas de estômago e coração sensíveis que porventura me leiam.  Foi quando eu me lembrei de Caetano Veloso e de Jamie Oliver.
                No documentário Coração vagabundo, tem uma hora que Caetano  diz: “Eu sou pop em tudo, menos em comida.”  Caetano já disse que o prato preferido dele é a baianíssima moqueca de miolo, feita pela sua mãe (lógico que a de Dona Canô eu nunca comi, mas o prato bem feito é uma maravilha; aliás, miolo é delicioso).  Pois bem: Jamie Oliver é pop.  Até dizer chega.  Dizem que está milionário até dizer chega, explorando a imagem do cozinheiro garotão com pinta de roqueiro inglês, em programas de TV ágeis e sabiamente dirigidos.  Que bom.  Congratulo-me com ele.  Daí que eu acho que também sou pop, um  pop-pobre. Mas não sei se a cozinha dele é pop. Sei que é criativa, rápida e talentosa.  Ouço falar que o pessoal da haute-cuisine torce o nariz e range dentes.  É bom.  A última preocupação dele parece ser agradar ao pessoal da haute-cuisine. A haute-cuisine, acho eu,  que não entendo xongas disso, tem uma base sobretudo francesa, que nos últimos anos vem sofrendo o assédio dos grandes chefs espanhóis.  E Jamie Oliver é inglês, o que em culinária e gastronomia depõe contra de saída, mas um inglês transviado que se deixou fascinar pela Itália, cuja cozinha exuberante se defende de francesismos,  e que  por isso também nunca foi lá muito bem vista pela haute-cuisine. 
                Mas estou aqui chutando e tergiversando.  O que eu quero é postar um texto de Jamie Oliver, que considero muito bom, de seu livro A Itália de Jamie. Tenho total identificação com seu ponto de vista nesse texto (suprimi alguns trechos só por questão de espaço).
                Uma observação fundamental: no livro, o texto vem ao lado de uma foto de página inteira, que mostra um velho pastor, no interior de sua casa, ao lado de um cordeiro que acabou de ser abatido.  Posto sobre uma mesa, o animal, branco, encontra-se de barriga para cima e sua cabeça está tombada para baixo em direção ao chão, de modo a que o sangue abundante proveniente de sua degola escorra. É a esta imagem – que não posto aqui por não tê-la encontrado disponibilizada na net  – que volta e meia Jamie se refere:

                “Tenho plena consciência de que a foto da página ao lado é tão artística quanto horrível, por isso vou explicar por que decidi usá-la neste livro e também por que este capítulo inteiro é visualmente impressionante.  Essa era uma imagem incrivelmente normal na Itália.  Eu queria muito usá-la, pois percebi que quando conversava com os italianos sobre a carne que comiam, eles quase sempre me falavam sobre o ambiente natural em que o animal tinha vivido, o que havia comido durante a vida – frutas, castanhas e ervas adoráveis – e como era tratado.  Tudo isso antes de terem abatido os animais ou pensado em cozinhá-los.  Parece haver um verdadeiro entendimento, mesmo entre as crianças, de que alguns animais são para alimentação e não considerados domésticos. Eu amo o fato de que o conceito humanitário deles não se preocupa apenas com o momento do abate, mas abarca toda a vida do animal e o seu bem-estar.
                Foi importante para mim mostrar isso no livro, porque é uma reflexão honesta do que eu vi na Itália e, também, porque muitas pessoas na Inglaterra podem fechar os olhos para esses aspectos desagradáveis relacionados ao consumo de carne.  E, para mim, é aí que está o problema.  Como as pessoas, geralmente, não querem ver os animais mortos nem de onde vem a carne que elas comem, as grandes corporações apareceram para resolver o problema – longe dos olhos, longe da mente.  Nelas os animais são criados em condições perturbadoras e entupidos de antibióticos (porque as doenças são muito abundantes nos confinamentos em que vivem).   E assim, podem lhe oferecer uma coxa, ou um peito de frango produzido em massa, ou ajudá-lo a alimentar suas crianças com uma carne processada, reformulada, remodelada e recondicionada de um modo que a torna irreconhecível.  Com um coquetel de aditivos e conservantes, aromatizantes e flavorizantes nos alimentos, não é difícil entender por que a Inglaterra é um dos países menos saudáveis de Europa, e porque a atual geração de crianças é a primeira com expectativa de vida inferior à de seus pais.  Chocante, não é?
                Na maior parte da sua vida, o pastor da foto ganhou menos dinheiro do que um inglês que vive de doações, mas a carne que ele come é tão boa quanto qualquer coisa servida à realeza.  É a relação honesta entre o italiano comum e a terra que o ajuda a fazer a escolha certa em sua alimentação – foi isso que permitiu aos italianos tornar-se o povo de maior expectativa de vida no mundo, depois do Japão e da Islândia.
                Como você pode ver, esse é um assunto a que dou muita importância. (...) E depois, se você ainda quiser ser um vegetariano, eu só posso cumprimentá-lo!mas, se você quiser comer uma carne realmente boa, então eu o saúdo para valer! Afinal, estamos no topo da cadeia alimentar.  No entanto, pelo amor de Deus, pare de sustentar esses m... que produzem alimentos baratos e sem sabor, mais artificiais do que você possa imaginar. “
                                                                       Jamie Oliver


quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

SEIS PESSOAS

          “Seis,  Bozzetti? Não acha muito não?  Quatro já tá bom...”  disse-me uma amiga mais rigorosa do que eu certa vez ao lhe expor o que vai a seguir.  Mas não dou razão a ela. É que não sei quem disse que “é impossível reunir mais de seis pessoas interessantes na mesma hora e no mesmo lugar”.  E eu estou absolutamente convencido disso.  Bem, devo dizer que não sou chegado a festas, congraçamentos, festejos sob pretextos tolos,  cultura da cerveja e da encheção de saco (com direito a baba no ombro e perdigoto na orelha), botecos onde se disputa aos berros quem consegue superar o som geralmente  insuportável da “música ao vivo”  de plantão – ou pior: do karaokê, toc toc toc – enfim, gosto de estar com as pessoas de quem gosto – são mais de seis, claro – em torno de uma mesa, bebendo (pode ser cerveja sim, por que não?) , comendo,conversando.  Conversando.  Gosto da conversa.  Gosto de conversar com quem gosto, de saber o que as pessoas de quem gosto pensam, de rir com elas, de cozinhar para elas, de falar  mal da vida alheia  com elas, de falar mal das nossas vidas também, de sermos solidários mutuamente  se o caso for esse.  E para que isso exista, não podem estar juntas mais de seis pessoas.  É que aí, nesse número  nada cabalístico, a conversa realmente acontece como interação.  Seis pessoas conversam entre si, mais do que isso não.  Desde que li a frase lá de cima (não a da minha amiga) passei a adotá-la como regra para receber amigos.  Se houver, por exemplo, oito ou mesmo sete pessoas, formam-se dois grupos ou mais.  E a interação entre seis pessoas deixa de existir.  Se forem mais, dou o nome de festa – ou de descuido de anfitrião. 

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

AH, UM SONETO...: O PRIMEIRO FRANCÊS (QUE NÃO É. CF. ERRATA)

Marcelo Diniz há algum tempo vem trabalhando na tradução de sonetos franceses, especialmente do século 17.  Seus amigos ansiamos para que ele finalmente resolva  publicá-las em livro, mas todos sabemos que sua  extrema perícia é inseparável da perfeição e de nenhuma pressa.  Atendendo a um convite meu, Marcelo me enviou dois desses trabalhos, que já saíram na revista Alea, de estudos neolatinos da UFRJ. 
Dou a seguir  a tradução do que Jacques Roubaud considera como o primeiro soneto em língua francesa.  A referência à Itália logo no primeiro verso indica que já então se considerava o pioneirismo italiano na prática dessa forma fixa.   Segundo ainda indica Marcelo, a fonte para o texto  é a antologia de Jacques Roubaud, Soleil du soleil, anthologie du sonnet français de Marot a Malherbe.  Vai bilíngüe abaixo, mantida a ortografia  do francês antigo.


Graves Sonnets, que la docte Italie
a pour les siens la primiere enfantez,
et que la France a depuis adoptez,
vous apprenant une grace accomplie.

Assez des-ja vostre gloire annoblie
par tant d’esprit, qui vous ont rechantez,
fait que de vous le haults Cieux son hantez,
fait que de vous ceste terre est remplie.

Venez en rangs aussi petits Huitains,
vennez Dizains, vrais enfans de la France.
si au marcher vous n’estes si hautains,

vous avez bien dessous moindre apparence
autant de grace, et ne meritez pas
qu’un estranger vous face mettre au bas.


Grave soneto, a Itália, douta pluma,
tem para si primícias de tua cria,
criança que França, então, adotaria,
ensinando-te graça que te apruma.

Há muito que tua glória se consuma
com teu canto que a tanta alma extasia,
que só contigo, o céu se cobriria,
que só contigo, a terra se avoluma.

Alinhai-vos também, breves Oitavas,
e Dezenas, nascidas desta França,
se vosso andar a tanto não se agrava,

decerto tendes vós, em vossa nuança,
tanta graça que nunca mereceis
que estranho algum deponha-vos de vez.

                                               Scevole de Saint-Marthe (1536-1623)
                                               tradução de Marcelo Diniz
ERRATA: Já havia postado a matéria acima, quando recebi de Marcelo Diniz a seguinte errata, ou esclarecimento, que posto a seguir:

"Caro Roberto,
os sonetos que enviei não são os que Roubaud considera como primeiro. Trata-se, de fato, uma primeira geração de sonetistas, que podemos, com alguma nuance, situá-la entre Marot e Ronsard. Os primeiro soneto francês, segundo Roubaud, que, diga-se de passagem, considera o primeiro sonetista Clément Marot, não é, no entanto, de Marot; é de Nicolar D'Herberay, tradutor do Amadis para o francês. Tenho a tradução deste soneto, esta sim publicada na Alea da UFRJ. Estes sonetos que você postou ainda são inéditos no Brasil[ele me enviou duas traduções, das quais postei uma] e pretendo incluí-los no meu +1[seu livro em preparo].

Talvez valha a pena a repostagem..."
Forte abraço,
Marcelo Diniz

Fica portanto acima esclarecido.  Divido com Marcelo a responsabilidade pelo equívoco, pois a primeira mensagem que ele me enviou estava um tanto truncada.  A pressa que ele não tem em seu trabalho de tradutor, às vezes se desafoga nas correspondências rápidas na net.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

TROMPAS

Se tua língua
linda de longa
lábia se aninha
em cada lábio
lábil da minha
trompa de Eustáquio
e langue-lenga,

a minha língua
logo se vinga,
lambe o batom
sabor de ópio
das tuas trom-
pas de Falópio
e nelas míngua.

                               Nelson Ascher (In: O sonho da Razão, 1993)

domingo, 19 de dezembro de 2010

NA MEMÓRIA: MOTO-PERPÉTUO NA PRK-30

             “- A festa bai ser uma b’leza!
             - Ah, bai, bai!
- Bai sair, não?  
- Não. Por quê?
- Por que bai bai é adeus em inglês!
- Não! Eu disse que a festa bai ser uma b’leza!
- Ah, bai, bai...
- Bai sair?
- Não, por quê?
- Porque bai bai é adeus em inglês!
- Não!! Eu disse que a festa bai ser uma b’leza!
- Ah, bai, bai!...
- Bai sair, não?
- Não. Por quê?!
...”

O diálogo amalucado aí em cima pode prosseguir até o infinito.  Seu sentido está no contra-sentido de base fonética que o alimenta.  Lógico que deve ser lido como se fosse no português de Portugal, como, aliás, era a norma de dicção no teatro brasileiro até meados do século XX .  E o que o mantém em moto-contínuo é que as falas passam de um  personagem para o outro, os quais as permutam alternadamente. .  É uma das maravilhosas invenções de Lauro Borges e Castro Barbosa, os responsáveis e astros únicos da PRK-30, “a emissora perturbadora das demais estações”, programa radiofônico de enorme sucesso por 20 anos, de 1944 a 64. Paulo Perdigão dedicou um livro ao programa, que vem com dois CDs (No ar: PRK-30!), uma seleção de diversos momentos do que foi ar.  Pessoalmente, não acho que os CDs mantenham sempre o mesmo nível alto.  Nos anos 70 uma gravadora pequena lançou dois LPs também de seleção.  O primeiro deles, de capa amarela (a do outro era verde), é espantosamente engraçado.  Mas o diálogo aí de cima não está em nenhum desses registros fonográficos: aprendi com um tio meu, que adorava o programa, sabia de cor vários sketches. Fica aqui como uma divertida lembrança e homenagem a ele, Aleardo.

sábado, 18 de dezembro de 2010

A PROPOSTA MODESTA DE SWIFT

               “É melancólico para os que andam por esta grande cidade ou viajam pelo interior ver as ruas, as estradas ou as soleiras dos casebres apinhadas de mendigas seguidas por três, quatro ou seis crianças, todas em andrajos e importunando todos os transeuntes pedindo esmola. Essas mães, em vez de trabalhar para ganhar a vida honestamente, são forçadas a ocupar todo seu tempo em perambulações, a pedir sustento para seus filhos desamparados que, ao crescer, ou se tornam ladrões por falta de trabalho, ou deixam sua querida terra natal para ir lutar pelo Pretendente na Espanha ou se vender aos Barbados.
                Creio ser consenso que esse prodigioso número de crianças no colo, ou nas costas, ou nos calcanhares de suas mães, e frequentemente de seus pais, é, no deplorável estado em que se encontra o Reino, um malefício adicional considerável; e, portanto, quem quer que descobrisse um meio justo, fácil e barato de tornar essas crianças membros úteis e saudáveis da nação mereceria por parte do público até mesmo que lhe fosse erguida uma estátua de Salvador da Pátria.
                Mas meu objetivo está longe de se limitar a tratar apenas dos filhos de mendigos declarados, é de muito maior abrangência e engloba a totalidade das crianças de certa idade, nascidas de pais na verdade tão pouco capazes de sustentá-las como esses que apelam à nossa caridade pelas ruas.
                De minha parte, tendo por muitos anos dedicado minhas reflexões a esse importante assunto e tendo maduramente pesado os vários projetos de outros planejadores, sempre os achei grosseiramente equivocados em seus cálculos.  É certo que uma criança recém-parida pode ser sustentada pelo leite da mãe durante um ano solar com pouco alimento extra, no valor de dois xelins no máximo, o que a mãe certamente pode obter, ou esse mesmo valor em restos de comida, por meio de sua legal ocupação de mendiga; e é exatamente quando tiverem um ano de idade que proponho olhar por essas crianças, de tal maneira que, em vez de serem um fardo para seus pais ou carecerem de comida e roupa para o resto da vida, elas, pelo contrário, contribuam para alimentar e, em parte, vestir muitos milhares de pessoas.
                Existe igualmente uma outra grande vantagem em meu projeto, que é a de impedir esses abortos voluntários e esse horrível costume, infelizmente tão comum entre nós, de as mulheres matarem os seus filhos bastardos, sacrificando os pobres bebês inocentes (desconfio que mais para evitar as despesas do que a vergonha), que causam pena e lágrimas no coração mais selvagem e desumano.
                (...)
                Vou agora, portanto, humildemente expor minhas próprias idéias, que espero não levantem a menor objeção.
                Um americano muito entendido, conhecido meu em Londres, assegurou-me que uma criancinha saudável e bem tratada é, com um ano, um alimento realmente delicioso, nutritivo e completo, seja cozida, grelhada, assada ou fervida; e não tenho dúvidas de que possa servir igualmente para um guisado ou um ensopado.
                A proposta que, portanto, humildemente ofereço à apreciação do público é que das cento e vinte mil crianças já calculadas, vinte mil fossem reservadas para a reprodução, das quais uma quarta parte apenas fosse de machos, o que é mais do que admitimos para os ovinos, bovinos ou suínos; e meu argumento é que essas crianças raramente são fruto do matrimônio, circunstância não muito levada em conta por nossos selvagens, sendo portanto um macho suficiente para servir quatro fêmeas.  Que as cem mil restantes fossem, com a idade de um ano, colocadas à venda para pessoas de bem e fortuna em todo o Reino, sempre se aconselhando às mães que as deixem mamar abundantemente durante o último mês de modo a torná-las gordas e rechonchudas para uma boa mesa.  Uma criança daria dois pratos numa recepção para amigos e, jantando a família a sós, o quarto dianteiro ou traseiro daria um prato razoável, e, temperado com ou pouco de pimenta ou sal, ficaria muito bom fervido no quarto dia, especialmente no inverno.
                Calculei que uma criança recém-nascida pesa em média umas doze libras e que, num ano solar, se razoavelmente bem cuidada, aumentaria para vinte e oito libras.
                Admito que essa comida seria um tanto cara, portanto muito apropriada para os senhores de terra que, tendo já devorado a maioria dos pais, parecem ter maiores direitos sobre os filhos.
                (...)”
                                                                                              Jonathan Swift

Em 1729, numa Grã-Bretanha às portas da Revolução Industrial, Jonathan Swift, irlandês, autor de As viagens de Gulliver, dava a conhecer sua “modest proposal” para enfrentar os problemas que começavam a se aguçar, numa economia que passava rapidamente de uma secular estrutura agrária para o processo irreversível de urbanização, especialmente nas cidades que começavam a inchar de mão de obra excedente e desenraizada do mundo rural.  Acima foram recortados alguns fragmentos da apresentação inicial do texto de Swift. A tradução é de  José Oscar de A. Marques e Dorotée de Bruchard, na bela edição da Editora da UNESP (2002), na série de livros de bolso “Pequenos frascos”.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

ZONA FANTASMA

“Estou na lona/sou quase um ectoplasma/prisioneiro da zona fantasma” cantava delirantemente, como sempre,  lá pra meados da década de 80,  Jorge Mautner.  A zona fantasma é uma dimensão nas histórias do Superman onde ficam aprisionados os grandes vilões que sobreviveram ao cataclismo que destruiu o planeta Krypton.  É uma espécie de limbo, digamos. Na canção de Mautner e Jacobina ela é sobretudo uma referência enviesada á própria situação de Mautner no cenário da MPB daqueles tempos – uma temática recorrente, aliás, em suas belas canções, abordada sempre com seu peculiaríssimo senso de humor e agudeza.  Mautner desde sempre se viu confinado à zona fantasma do nosso cancioneiro midiático.  Ele canta em outro momento: “Oh que situação aflita/oh que situação maldita/ficar eternamente exposto aos raios desta kryptonita”.  Porque, com a exceção de “Maracatu atômico”, mega-sucesso na gravação de Gil no começos dos 70 e sucesso-cult com Nação Zumbi nos 90, podemos dizer que a obra musical de Mautner nunca se libertou propriamente desse limbo a que, injusta mas compreensivelmente, é relegada.
O cenário mudou muito de 85 para cá e o que foi ficando mais claro, creio, é que na verdade existem várias zonas fantasmas no interior desse complexo industrial-musical-mercadológico-midiático  que se pode imperfeitamente tentar sintetizar na sigla MPB.  E no interior disso, o cenário é mutante, seus moradores escapam sim, às vezes, embora, ainda às vezes,  ganhem só uma liberdade condicional.
Claro que isso aqui é só uma brincadeira, não vai nenhuma veleidade de rigor, brincadeira   estimulada pela canção de Mautner e até antes disso pelo Tom Zé de 1973, que  cantava de maneira provocativa: “Todo compositor brasileiro é um complexado/por que então esta mania danada/esta preocupação/de falar tão sério?(...)/Ai meu Deus do céu/vai ser sério assim no inferno!”  Tom Zé foi um dos mais ilustres habitantes desta zona até o famoso episódio de David Byrne, o alienígena que conseguiu resgatá-lo em 1992.  Quem, até então,  ao listar os grandes nomes de compositores de sua geração o incluiria entre Caetano, Chico, Gil,  Milton, Paulinho da Viola, Edu Lobo?  Quem, ao fazer a mesma lista hoje, ousaria excluí-lo?
Dentre os moradores não muito ilustres desse limbo, dois me são particularmente afeiçoados, embora longe de serem os únicos:  Cristina, a esplêndida “anti-cantora” – para meu critério pessoal a voz feminina mais tocante de nossa música, junto com Aracy de Almeida – da família Buarque de Hollanda, que atravessou a década de 70 fazendo os melhores discos de samba que se possa imaginar ao lado dos de Paulinho da Viola.  Duas observações aqui a calhar: a década de 70 consagrou três cantoras de samba, diferentes entre si mas todas dedicadas a “carregar a bandeira” – como se gosta de dizer – do gênero: Clara Nunes, Beth Carvalho e Alcione; Cristina ficou na sombra, e para mim, na verdade sempre foi a árvore. O que se percebe hoje é que a importância de seu trabalho vem sendo reconhecida pelas “novas gerações que carregam a bandeira” etc (esse papo é muito chato).  A outra observação: ao serem feitos os balanços da década de 70 da “tal MPB”, mesmo o melhor desses balanços, feito por Wisnik, não incluiu – não ser en passant – o nome de Paulinho da Viola (Tom Zé então...).
Outra moradora da zona fantasma, cuja discrição é a marca absoluta além da espantosa qualidade de seu trabalho, é Sueli Costa.  Discrição e alta qualidade talvez continuem sendo garantia de que ela por lá ficará sabe-se até quando...
Pra encerrar esse papo meio troncho: o mais trágico morador da zona fantasma sem dúvida nenhuma é Wilson Simonal.  O documentário recentemente realizado sobre a sua trajetória deixa isso claro.  Esse não teve jeito: começa a escapar depois de morto, dando uma conotação ideológica avessa aos versos da esquerda engajada de Paulo Cesar Pinheiro: “Você me prende vivo/eu escapo morto/de repente: olha eu de novo!”  Quando o filme foi lançado eu escrevi um texto que postei num site de relacionamentos aí.  Agora ele (o filme) anda sendo exibido no Canal Brasil.  Dia desses vou postá-lo aqui.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

NATAL 1961

Deslocados por uma operação burocrática - o recenseamento da terra - a Virgem e o carpinteiro José aportam a Belém.

"Não há lugar para esta gente", grita o dono do hotel onde se realiza um congresso internacional de solidariedade.

O casal dirige-se a uma estrebaria, recebido por um boi branco e um burro cansado do trabalho.

Os soldados de Herodes distribuem elementos radioativos a todos os meninos de menos de dois anos.

Uma poderosa nuvem em forma de cogumelo abre o horizonte e súbito explode.

O menino nasce morto.

                                                                                Murilo Mendes
                                                                                 Roma, 1961

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

OSCAR NIEMEYER


Do que é criado
de Deus nascido
por Ele feito
e oferecido
à vida humana
nada de nítido
mas o inteiriço
não  o contorno
mas o contido
nos  continentes
inominados
matéria pura
ou puro espírito
do que é dado
foi nado e tido
e sempre dado
será aceito
para ser nido
ser contingência
dos divididos
por alguns homens
foi recusado
não pelo todo
mas pelo estrito
de coisa falta
alheia e erma
ao duro estudo
ou intuído
ele foi um
que recusou
indiferente
malgradecido
por isso fez
além da  cópia
de olhos fechados
de sensitivo
à luz ao vento
ao vôo ao trisso
foi que ele fez
cidade prédio
contorno iluso
inquieto espírito
nos continentes
atrás do vínculo
da voz humana
essa incontida
em esperança
ou mesmo equívoco
em desfuturos
vagos empíreos
abortos vis
régios monturos
centúria vinte
de cataclismos
ele fez traço
não mais que isso
ele ousou
bem mais que aquilo
do que foi dado
completo e pleno
e em seu lugar
plantou em plano
grão curvilíneo
em tudo traço
da retidão
da humana lida
gozo de seu
preciso arco
na contramão
da linha reta
da estreita via
agradecida
de Deus esmola
servil cativa.

   
                    O poema acima está na seção "Nomes de formas" de meu Firma irreconhecível (Ed. Oficina Raquel). Posto-o nesta oportunidade em comemoração aos 103 anos do arquiteto, completados nesta data.

AH, UM SONETO...

              O soneto, como forma poética, está para mim sintetizado nesse belo título que Álvaro de Campos achou para o seu.  Provavelmente a forma mais praticada de poesia ocidental, o soneto só é rígido em mãos inábeis ou apenas esforçadas em consegui-lo: os grandes poetas fazem com que seu sentido mais profundo de forma fixa se movimente imageticamente em bilhões de combinações rítmicas, fônicas, lexicais e mesmo métricas, que a aparente rigidez formal antes ressalta do que escamoteia quando lemos um grande soneto; e só aparentemente é uma forma breve: os grandes sonetos duram enquanto vivemos e os recordamos e gostamos de percorrer, galgar, escalar seus  versos até nos sentirmos à vontade para flanar por eles. Brevidade não implica ligeireza, superficialidade. 
                Essa junção de enganosa previsibilidade poética e permanente surpresa me leva sempre a dizer, reverberando Campos, “Ah, um soneto...” 
Vou postar aqui, sob essa rubrica, alguns sonetos de minha profunda admiração.  A começar pelo que lhe dá título.

AH, UM SONETO...
Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas – esta é boa! – era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?...
                              
Álvaro de Campos

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

DA SOLIDÃO

                 As pessoas mais sábias do que eu, de alma mais forte e elevada, podem criar para si um repouso inteiramente espiritual.  Eu, que a tenho como todo mundo, preciso que as comodidades do corpo me ajudem.  E, tendo chegado à idade de perder as que mais me apeteciam, procuro as que me permite ainda esta época da vida, e arranjo-me para as aproveitar.  É preciso, por todos os meios possíveis, inclusive unhas e dentes se necessário, que conservemos o gozo das satisfações da vida que os anos nos arrancam aos poucos, umas após outras, das mãos: “gozemos; somente os dias que damos ao prazer são nossos; brevemente não serás mais que cinza, sombra, fábula.” [Persio]
                Plínio e Cícero sugerem-nos como objetivo a glória.  Não me interessa nem de longe. A disposição de espírito mais contrária à vida solitária está na ambição.  Glória e repouso são incompatíveis entre si.  Plínio e Cícero somente livraram o corpo da multidão; mais do que nunca a ela pelo espírito e a intenção: “velho pândego, então só trabalhas para divertir o povo?” [Persio]; recuaram para melhor saltar e mediante violento impulso caíram em cheio no rebanho.

                                               Montaigne
                                               Tradução de Sérgio Milliet

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

DOIS POEMAS DE KAVÁFIS

Traduzidos por José Paulo Paes

MUROS

Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar,
ergueram à minha volta altos muros de pedra.

E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio a mente me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.

Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.


PRECE

Um marujo o abismo do mar guardou consigo.
Sem de nada saber, a mãe coloca um círio

aceso diante da Virgem, um longo círio,
para que volte logo, a salvo dos perigos.

No bramido dos ventos põe o seu ouvido;
mas enquanto ela reza e faz o seu pedido,

sabe o ícone a escutá-la, grave, com pesar,
que o filho que ela espera nunca há de voltar.

domingo, 12 de dezembro de 2010

NA MEMÓRIA: O SAMBA FALADO

               Escrevi aqui outro dia sobre a Velha Guarda da Portela e me lembrei, numa associação pelo avesso, de Ernâni Alvarenga (1914-1992).  Mais precisamente de um samba de Ernâni Alvarenga:  “Lá vem ela chorando/o que é que ela quer?/pancada não é/já dei.”  Cantarolei e uma amiga me lembrou  que Monarco gravou isso lindamente, o que é verdade.  Mas por que eu digo que foi uma associação pelo avesso?  Porque Ernâni Alvarenga, às vezes chamado Alvarenga da Portela, não fazia parte da Velha Guarda da Portela.  E já li que morou a vida toda em Oswaldo Cruz, assim como também é notório ter sido um dos fundadores da azul-e-branco.  Recusava-se à identificação com a Velha Guarda da escola, como tive oportunidade de ouvir uma vez dele mesmo.
                Foi acho que em 1978, na Letras da UFF. Era um curso sobre cultura popular, e o professor Luiz Fernando Medeiros convidou alguns sambistas pra bater papo conosco, os alunos, verdadeiras palestras en petit comitê.  Num desses encontros foi lá Ernâni Alvarenga. Mulato longilíneo, embora não alto, camisa social para dentro da calça vincada, pequena  nécessaire de couro presa por uma tira ao ombro, óculos escuros estilosos, figurino acabado de malandro total, Alvarenga mandou ver e desfiou uma dúzia de sambas primorosos, dos quais pouquíssimos ouvi gravados.  Dicção absolutamente malandra, sibilina, um canto cheio de stacattos, o que justificava que carregasse por vezes o apelido de “Alvarenga, o Samba Falado”, como um Mário Reis sem granfinagem.  Lá pelas tantas disparou contra aqueles que o chamavam de “Alvarenga da Velha Guarda da Portela”: disse com todas as letras, em bom-humor irritado,  que não pertencia à Velha Guarda da Portela, entre outras coisas porque não gostava de “andar por aí de uniforme”.  Dava pra ver que era encrenqueiro e temperamental – o que não é uma apreciação pejorativa, entenda-se. 
                Era portanto um dissidente.  Parece que algumas vezes ele teria participado de algumas apresentações da Velha Guarda, parece que ora ficava próximo ora rompia relações com o pessoal, não sei bem.  Alguém algum dia vai contar essa história, espero.  Entre outras coisas porque dá para perceber que era um compositor primoroso, embora talvez pouco prolífico.  E que não teve ainda um disco individual dedicado à sua obra.  Uma hipótese me ajuda a pensar,  se não a sua dissidência, pelo menos a sua pouca identificação com o pessoal capitaneado por Monarco: é que todos os sambas que cantou lá aquele dia – como os 4 ou 5 que sei gravados – todos, sem exceção, versam sobre temas abertamente associados à malandragem.  Não ouvi nada parecido com uma linha temática lírico-amorosa, que perfaz a maioria dos sambas da Velha Guarda da Portela, se bem que não exclusivamente.
                Em Tudo azul, CD que Marisa Monte produziu com a Velha Guarda, tem um samba de Alvarenga: na verdade é uma chula, “Sabiá cantador”, um motivo quase folclórico, que glosa a amada que partiu, “foi pelas ondas do mar”.  Não é um samba malandro, longe disso, mas está longe de ser exatamente um samba lírico-amoroso. E foi o único samba de Alvarenga que a Velha Guarda gravou.  No filme de Carolina Jabor, que comentei aqui outro dia, ele é cantado em roda de samba miúdo durante a apresentação dos créditos finais. Passeio pela memória e não lembro também de Paulinho da Viola ter gravado Ernâni  Alvarenga.
                Aquela letra cujo trecho inicial está lá em cima dá bem uma mostra de sua poesia, na melhor tradição misógina herdada da turma do Estácio, conforme exposto por Luiz Antonio Giron em seu ótimo livro sobre Mário Reis.   Vai agora na íntegra:

LÁ VEM ELA

Lá vem ela chorando
o que que ela quer?
pancada não é
já dei
 mulher da orgia quando começa a chorar
quer dinheiro,
dinheiro não há

Carinhos eu tenho demais
pra vender e pra dar
pancada também não há faltar
mas dinheiro,
isso não dou a mulher
 faço descer à terra
o céu e as estrelas se ela quiser

 mas dinheiro não há...