“Estou na lona/sou quase um ectoplasma/prisioneiro da zona fantasma” cantava delirantemente, como sempre, lá pra meados da década de 80, Jorge Mautner. A zona fantasma é uma dimensão nas histórias do Superman onde ficam aprisionados os grandes vilões que sobreviveram ao cataclismo que destruiu o planeta Krypton. É uma espécie de limbo, digamos. Na canção de Mautner e Jacobina ela é sobretudo uma referência enviesada á própria situação de Mautner no cenário da MPB daqueles tempos – uma temática recorrente, aliás, em suas belas canções, abordada sempre com seu peculiaríssimo senso de humor e agudeza. Mautner desde sempre se viu confinado à zona fantasma do nosso cancioneiro midiático. Ele canta em outro momento: “Oh que situação aflita/oh que situação maldita/ficar eternamente exposto aos raios desta kryptonita”. Porque, com a exceção de “Maracatu atômico”, mega-sucesso na gravação de Gil no começos dos 70 e sucesso-cult com Nação Zumbi nos 90, podemos dizer que a obra musical de Mautner nunca se libertou propriamente desse limbo a que, injusta mas compreensivelmente, é relegada.
O cenário mudou muito de 85 para cá e o que foi ficando mais claro, creio, é que na verdade existem várias zonas fantasmas no interior desse complexo industrial-musical-mercadológico-midiático que se pode imperfeitamente tentar sintetizar na sigla MPB. E no interior disso, o cenário é mutante, seus moradores escapam sim, às vezes, embora, ainda às vezes, ganhem só uma liberdade condicional.
Claro que isso aqui é só uma brincadeira, não vai nenhuma veleidade de rigor, brincadeira estimulada pela canção de Mautner e até antes disso pelo Tom Zé de 1973, que cantava de maneira provocativa: “Todo compositor brasileiro é um complexado/por que então esta mania danada/esta preocupação/de falar tão sério?(...)/Ai meu Deus do céu/vai ser sério assim no inferno!” Tom Zé foi um dos mais ilustres habitantes desta zona até o famoso episódio de David Byrne, o alienígena que conseguiu resgatá-lo em 1992. Quem, até então, ao listar os grandes nomes de compositores de sua geração o incluiria entre Caetano, Chico, Gil, Milton, Paulinho da Viola, Edu Lobo? Quem, ao fazer a mesma lista hoje, ousaria excluí-lo?
Dentre os moradores não muito ilustres desse limbo, dois me são particularmente afeiçoados, embora longe de serem os únicos: Cristina, a esplêndida “anti-cantora” – para meu critério pessoal a voz feminina mais tocante de nossa música, junto com Aracy de Almeida – da família Buarque de Hollanda, que atravessou a década de 70 fazendo os melhores discos de samba que se possa imaginar ao lado dos de Paulinho da Viola. Duas observações aqui a calhar: a década de 70 consagrou três cantoras de samba, diferentes entre si mas todas dedicadas a “carregar a bandeira” – como se gosta de dizer – do gênero: Clara Nunes, Beth Carvalho e Alcione; Cristina ficou na sombra, e para mim, na verdade sempre foi a árvore. O que se percebe hoje é que a importância de seu trabalho vem sendo reconhecida pelas “novas gerações que carregam a bandeira” etc (esse papo é muito chato). A outra observação: ao serem feitos os balanços da década de 70 da “tal MPB”, mesmo o melhor desses balanços, feito por Wisnik, não incluiu – não ser en passant – o nome de Paulinho da Viola (Tom Zé então...).
Outra moradora da zona fantasma, cuja discrição é a marca absoluta além da espantosa qualidade de seu trabalho, é Sueli Costa. Discrição e alta qualidade talvez continuem sendo garantia de que ela por lá ficará sabe-se até quando...
Pra encerrar esse papo meio troncho: o mais trágico morador da zona fantasma sem dúvida nenhuma é Wilson Simonal. O documentário recentemente realizado sobre a sua trajetória deixa isso claro. Esse não teve jeito: começa a escapar depois de morto, dando uma conotação ideológica avessa aos versos da esquerda engajada de Paulo Cesar Pinheiro: “Você me prende vivo/eu escapo morto/de repente: olha eu de novo!” Quando o filme foi lançado eu escrevi um texto que postei num site de relacionamentos aí. Agora ele (o filme) anda sendo exibido no Canal Brasil. Dia desses vou postá-lo aqui.
Bacana essa história da zona fantasma.David Byrne, o alienígena,rsrsr!
ResponderExcluirAh, o papo é velho, mas não é chato!rs
Abraços
Meu caro Kassio,
ResponderExcluirobrigado pelo comentário. não sei se ficou claro: samba não é chato, mas os papos em torno quase sempre são. isso de o samba ser a bandeira ser a bandeira (em geral, de um nacionalismo tosco) eu penso ser muito chato sim. além de velho, como você sabe, claro.
abraço