sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

ZONA FANTASMA

“Estou na lona/sou quase um ectoplasma/prisioneiro da zona fantasma” cantava delirantemente, como sempre,  lá pra meados da década de 80,  Jorge Mautner.  A zona fantasma é uma dimensão nas histórias do Superman onde ficam aprisionados os grandes vilões que sobreviveram ao cataclismo que destruiu o planeta Krypton.  É uma espécie de limbo, digamos. Na canção de Mautner e Jacobina ela é sobretudo uma referência enviesada á própria situação de Mautner no cenário da MPB daqueles tempos – uma temática recorrente, aliás, em suas belas canções, abordada sempre com seu peculiaríssimo senso de humor e agudeza.  Mautner desde sempre se viu confinado à zona fantasma do nosso cancioneiro midiático.  Ele canta em outro momento: “Oh que situação aflita/oh que situação maldita/ficar eternamente exposto aos raios desta kryptonita”.  Porque, com a exceção de “Maracatu atômico”, mega-sucesso na gravação de Gil no começos dos 70 e sucesso-cult com Nação Zumbi nos 90, podemos dizer que a obra musical de Mautner nunca se libertou propriamente desse limbo a que, injusta mas compreensivelmente, é relegada.
O cenário mudou muito de 85 para cá e o que foi ficando mais claro, creio, é que na verdade existem várias zonas fantasmas no interior desse complexo industrial-musical-mercadológico-midiático  que se pode imperfeitamente tentar sintetizar na sigla MPB.  E no interior disso, o cenário é mutante, seus moradores escapam sim, às vezes, embora, ainda às vezes,  ganhem só uma liberdade condicional.
Claro que isso aqui é só uma brincadeira, não vai nenhuma veleidade de rigor, brincadeira   estimulada pela canção de Mautner e até antes disso pelo Tom Zé de 1973, que  cantava de maneira provocativa: “Todo compositor brasileiro é um complexado/por que então esta mania danada/esta preocupação/de falar tão sério?(...)/Ai meu Deus do céu/vai ser sério assim no inferno!”  Tom Zé foi um dos mais ilustres habitantes desta zona até o famoso episódio de David Byrne, o alienígena que conseguiu resgatá-lo em 1992.  Quem, até então,  ao listar os grandes nomes de compositores de sua geração o incluiria entre Caetano, Chico, Gil,  Milton, Paulinho da Viola, Edu Lobo?  Quem, ao fazer a mesma lista hoje, ousaria excluí-lo?
Dentre os moradores não muito ilustres desse limbo, dois me são particularmente afeiçoados, embora longe de serem os únicos:  Cristina, a esplêndida “anti-cantora” – para meu critério pessoal a voz feminina mais tocante de nossa música, junto com Aracy de Almeida – da família Buarque de Hollanda, que atravessou a década de 70 fazendo os melhores discos de samba que se possa imaginar ao lado dos de Paulinho da Viola.  Duas observações aqui a calhar: a década de 70 consagrou três cantoras de samba, diferentes entre si mas todas dedicadas a “carregar a bandeira” – como se gosta de dizer – do gênero: Clara Nunes, Beth Carvalho e Alcione; Cristina ficou na sombra, e para mim, na verdade sempre foi a árvore. O que se percebe hoje é que a importância de seu trabalho vem sendo reconhecida pelas “novas gerações que carregam a bandeira” etc (esse papo é muito chato).  A outra observação: ao serem feitos os balanços da década de 70 da “tal MPB”, mesmo o melhor desses balanços, feito por Wisnik, não incluiu – não ser en passant – o nome de Paulinho da Viola (Tom Zé então...).
Outra moradora da zona fantasma, cuja discrição é a marca absoluta além da espantosa qualidade de seu trabalho, é Sueli Costa.  Discrição e alta qualidade talvez continuem sendo garantia de que ela por lá ficará sabe-se até quando...
Pra encerrar esse papo meio troncho: o mais trágico morador da zona fantasma sem dúvida nenhuma é Wilson Simonal.  O documentário recentemente realizado sobre a sua trajetória deixa isso claro.  Esse não teve jeito: começa a escapar depois de morto, dando uma conotação ideológica avessa aos versos da esquerda engajada de Paulo Cesar Pinheiro: “Você me prende vivo/eu escapo morto/de repente: olha eu de novo!”  Quando o filme foi lançado eu escrevi um texto que postei num site de relacionamentos aí.  Agora ele (o filme) anda sendo exibido no Canal Brasil.  Dia desses vou postá-lo aqui.

2 comentários:

  1. Bacana essa história da zona fantasma.David Byrne, o alienígena,rsrsr!
    Ah, o papo é velho, mas não é chato!rs
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Meu caro Kassio,

    obrigado pelo comentário. não sei se ficou claro: samba não é chato, mas os papos em torno quase sempre são. isso de o samba ser a bandeira ser a bandeira (em geral, de um nacionalismo tosco) eu penso ser muito chato sim. além de velho, como você sabe, claro.

    abraço

    ResponderExcluir